fazia muito tempo que eu não lia uma peça, e essa do Nelson Rodrigues pulou na minha cabeça. já de cara vi que estava diante de algo fora do imaginário conhecido rodrigueano, pois não há nenhum personagem masculino em cena (apesar de haver citações a homens).
Doroteia bate à porta das primas ("acho lindo ter parente!"), pedindo asilo e ajuda. a casa é habitada por 3 viúvas e a filha de uma delas. todas muito pudicas, trajando vestes longas negras, orgulhosas de serem mulheres de bem e acima das tentações mundanas.
as senhoras a recebem mal, pois tinham duas primas chamadas Doroteia: uma, morreu afogada; a outra, perdeu-se na vida e nos homens. qualquer uma das duas que batesse à porta não seria bem-vinda.
as mulheres da família têm uma espécie de maldição: elas não podem ver homens, mesmo que eles as carreguem nos braços. e todas elas precisam se manter puras até o casamento, para terem uma "náusea" nas núpcias (outra nefasta tradição familiar), caso contrário, elas nunca poderão morrer (a não ser que se suicidassem, mas isso também não era aceito)
quando Doroteia assume que é a que virou puta (extremamente arrependida), as primas afirmam que preferiam que fosse a que tinha morrido (suicidou-se porque não podia suportar que, por debaixo de toda a pureza das suas roupas pesadas, houvesse um corpo nu, capaz de pecar).
Doroteia assume o que fez, pois, aparentemente, ela podia ver os homens e nunca teve a tal náusea. mas ela tinha tido um filho, que morrera com poucos meses, e, pela memória dele, não queria se envolver com homens nunca mais. porém, sabia que a carne era fraca, e apenas se tornando uma delas, poderia se afastar das tentações.
é uma peça cheia de simbologias e sutilezas, o que também me remete à capa do livro, uma obra de Mondrian. talvez apenas a geometria possa explicar o que as palavras não conseguem... a perfeição das linhas e os tamanhos diversos arrumados em paralelo unem-se em um quebra-cabeças belo, mas sem sentido.
na história, o homem é representado por um par de botinas desabotoadas (quase o equivalente a tomou banho de sunga branca!, de safadeza) e na casa "todos os quartos morreram e só as salas vivem!" -- as primas não dormiam, pois podiam sonhar com algo pecaminoso.
as primas afastam Doroteia, acusando-a de ser bonita demais para ser uma mulher direita: "teu hálito é bom demais para uma mulher honesta!" ou "espinha em mulher é bom sinal! não acredito em mulher de pele boa!".
e então começa a saga de Doroteia para se tornar uma mulher digna e feia. D. Flávia, a prima mais ferrenha, indica-lhe que se encontre com Nepomuceno, um homem atormentado (que foi muito gentil com ela), para lhe pedir chagas que cobrissem o rosto e o corpo. fica na imaginação do leitor que pedaço de alma (ou de corpo) ela teve que dar para ter o desejo atendido.
é muito interessante ver, ainda que Nelson Rodrigues tenha escrito tudo ao contrário, a busca pelo padrões de beleza (onde é belo ser horrendo, pois denota caráter): a busca para que a embalagem seja mais agradável aos olhos, geralmente melhor do que o próprio conteúdo.
atual e visceral, Doroteia mostra a necessidade de se anular para ser aceita (e para se aceitar).
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