sexta-feira, 11 de abril de 2014

L09 - Doroteia

fazia muito tempo que eu não lia uma peça, e essa do Nelson Rodrigues pulou na minha cabeça. já de cara vi que estava diante de algo fora do imaginário conhecido rodrigueano, pois não há nenhum personagem masculino em cena (apesar de haver citações a homens).

Doroteia bate à porta das primas ("acho lindo ter parente!"), pedindo asilo e ajuda. a casa é habitada por 3 viúvas e a filha de uma delas. todas muito pudicas, trajando vestes longas negras, orgulhosas de serem mulheres de bem e acima das tentações mundanas.

as senhoras a recebem mal, pois tinham duas primas chamadas Doroteia: uma, morreu afogada; a outra, perdeu-se na vida e nos homens. qualquer uma das duas que batesse à porta não seria bem-vinda.

as mulheres da família têm uma espécie de maldição: elas não podem ver homens, mesmo que eles as carreguem nos braços. e todas elas precisam se manter puras até o casamento, para terem uma "náusea" nas núpcias (outra nefasta tradição familiar), caso contrário, elas nunca poderão morrer (a não ser que se suicidassem, mas isso também não era aceito)

quando Doroteia assume que é a que virou puta (extremamente arrependida), as primas afirmam que preferiam que fosse a que tinha morrido (suicidou-se porque não podia suportar que, por debaixo de toda a pureza das suas roupas pesadas, houvesse um corpo nu, capaz de pecar).

Doroteia assume o que fez, pois, aparentemente, ela podia ver os homens e nunca teve a tal náusea. mas ela tinha tido um filho, que morrera com poucos meses, e, pela memória dele, não queria se envolver com homens nunca mais. porém, sabia que a carne era fraca, e apenas se tornando uma delas, poderia se afastar das tentações.

é uma peça cheia de simbologias e sutilezas, o que também me remete à capa do livro, uma obra de Mondrian. talvez apenas a geometria possa explicar o que as palavras não conseguem... a perfeição das linhas e os tamanhos diversos arrumados em paralelo unem-se em um quebra-cabeças belo, mas sem sentido.

na história, o homem é representado por um par de botinas desabotoadas (quase o equivalente a tomou banho de sunga branca!, de safadeza) e na casa "todos os quartos morreram e só as salas vivem!" -- as primas não dormiam, pois podiam sonhar com algo pecaminoso.

as primas afastam Doroteia, acusando-a de ser bonita demais para ser uma mulher direita: "teu hálito é bom demais para uma mulher honesta!" ou "espinha em mulher é bom sinal! não acredito em mulher de pele boa!".

e então começa a saga de Doroteia para se tornar uma mulher digna e feia. D. Flávia, a prima mais ferrenha, indica-lhe que se encontre com Nepomuceno, um homem atormentado (que foi muito gentil com ela), para lhe pedir chagas que cobrissem o rosto e o corpo. fica na imaginação do leitor que pedaço de alma (ou de corpo) ela teve que dar para ter o desejo atendido.

é muito interessante ver, ainda que Nelson Rodrigues tenha escrito tudo ao contrário, a busca pelo padrões de beleza (onde é belo ser horrendo, pois denota caráter): a busca para que a embalagem seja mais agradável aos olhos, geralmente melhor do que o próprio conteúdo.

atual e visceral, Doroteia mostra a necessidade de se anular para ser aceita (e para se aceitar).

quarta-feira, 9 de abril de 2014

L08 - Orgulho e Preconceito

sei que sou uma viadinha que gosta de histórias de amor, mas também gosto ainda mais de ter a minha inteligência respeitada, e eis o motivo por eu adorar Orgulho e Preconceito.

o filme eu já devo ter visto trocentas vezes, graças à tv por assinatura, que o reprisa ad infinitum, e ao maravilhoso Mr. Darcy (aaaaaaaaai, papaaaaai!).

mas hoje eu vim falar do livro, publicado no começo do século 19, por Jane Austen (que o havia escrito aos 20 anos).

foi um exercício interessantíssimo ler as ideias de uma mulher tão jovem, escritas em uma época em que mulheres eram "feitas" para se tornarem esposas, mães, mas nunca para exercerem atividades tidas, à época, como exclusivamente masculinas, como a produção literária.

[digressão]
me lembrei agora da defesa que uma colega fez na faculdade, explicando que as revistas femininas tinham menos páginas de matérias (e mais propagandas) porque eram voltadas para mulheres intelectualmente ativas (sic), que podiam lê-las mais rápido (!!!)
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voltando à trama, a protagonista, Elizabeth (Lizzy) Bennet é a segunda de cinco irmãs, não é ingênua como a primogênita, nem deslumbrada e fútil como as duas mais novas. Lizzy é crítica, espirituosa e leal à própria família, apesar de ter consciência de que a mãe é uma completa desmiolada e o pai é omisso.

a rotina da cidade onde moram muda com a chegada de um cavalheiro rico com a sua família, Mr. Bingley, e de seu amigo, Mr. Darcy (ainda mais rico). a partir de então, Darcy e Lizzy se encontram e se reencontram, meio a equívocos e gestalts forçadamente fechadas, onde talvez a moral da história seja "cuidado com julgamentos precipitados".

a escrita em alguns pontos é meio confusa, mas a essência não se perde: por baixo da relação entre os dois, há critica, muitas vezes mordaz, sobre o estilo da sociedade naquela época e seus valores.

pela boca da personagem, a autora questiona a instituição do casamento, a relação entre irmãos, os direitos que os mais velhos (e abastados) julgavam ter para decidir a vida dos que estavam ao seu redor e que deles, de alguma forma, dependiam...

mas o que mais me chamou a atenção foram os momentos em que as irmãs ficaram extremamente surpresas que um dos personagens, tido por elas como muito bonito e educado, pudesse ser mau-caráter (para elas, era inconcebível que uma bela figura não tivesse sentimentos e ações igualmente belos).

esse tipo de nuance se perde no filme, que dá um enfoque bem maior ao romance propriamente dito do que à construção e desconstrução dos protagonistas.

mas continuarei a ver o filme sempre que tiver que precisar esperar para ganhar mais vidas no candy crush, por motivos de quem nunca?:

status: vim a óbito!