segunda-feira, 31 de março de 2014

C15 - Tudo por Justiça

o plano original para o sábado era vermos um dos filmes que estão em cartaz da mostra Panorama de Cinema de Burkina Faso, no ccbb de brasólia, mas houve um evento no mesmo dia, e não conseguimos atravessar o mar de carros para termos esta experiência maravilhosa.

diante da negativa do universo, e, entre as poucas opções em cartaz (excetuando o que já havíamos visto, óbvio), escolhemos Tudo por Justiça, produzido pelo Leonardo DiCaprio e pelo Riddley Scott e protagonizado pelo Christian Bale.

admito que ainda tenho problemas com o Christian Bale, desde que ele fez o Batman mastigando carrapicho, mas curti muito a atuação dele no Trapaça para deixar de ir ao cinema por causa dele...

voltando ao filme: meldels, é péssimo! é quase uma versão masculina dos romances da Danielle Steel, onde o protagonista sofre, sooofre, soooooofre, mas continua acreditando no papai noel e no coelhinho da páscoa.

o cara é super correto, mas é preso, semicurrado, abandonado pela namorada pelo Forest Whitaker (!!!), o pai morre enquanto ele tá na prisão e o irmão, veterano de guerra, surta. ainda assim, o caráter do personagem de Bale (Russell Baze) não oscila um milímetro.

quando o irmão se envolve com um povo barra pesada, ele resolve assumir o título em português do filme, mas o seu temperamento trabalhadíssimo na inércia estática o impede de fazer algo além do pouco que ele faz na vida, que é respirar e eventualmente se mexer.

depois de muito divagar sobre a garyoldmanização do Christian Bale, de pedir a deus um controle remoto para passar logo para o final, e de presenciar um povo batendo boca (acho que falavam de futebol, whatever), o filme começou a parecer, pra mim e pro mofi, uma citação d'O Processo (Kafka, adaptado por Orson Welles).

garyoldmanização de Christian Bale
em O Processo, Josef K. passa o filme inteiro fugindo (não sabe do quê, mas está sendo acusado de algo) e clamando pela sua inocência. em um final construído com elementos semelhantes, aquele que passou o filme inteiro na inocência finalmente se torna culpado. e o filme acaba, quando deveria, de fato, começar.

de todos os que eu vi no cinema em 2014, este foi o pior, com louvor. quem sabe, se se chamasse Tudo por um Shampoo sem Resíduos, fosse melhor.

C14 - Prenda-me (Arretez Moi)

era sexta-feira e nessa brenha chamada brasólia não estreou quase nada: os filmes que estão em cartaz ou são uó ou estão em horários ainda pEores. mas é claro que há filmes bons (ainda não assistidos), grazadeus!

pela sinopse maravilhosa (mulher resolve ir à delegacia se entregar como assassina do marido, que já havia morrido à quase 10 anos e que a polícia havia concluído que se tratava de suicídio), resolvemos (mofi e eu) ver o Arretez Moi no Liberty Small (hipocorístico dado pelo @philosopop, que levei para a vida).

trata-se de um filme de diálogos fortes, acompanhados pelas primorosas atuações de Sophie Marceau como "a mulher que matou o marido" e Miou-Miou como a policial truculenta e que se nega a prender a "assassina".

a trama fala da violência e dos seus efeitos secundários, como o medo de quem é vítima, os abusos constantes, a violência mental tão ou mais dolorosa que a física, os filhos presenciando o comportamento e, muitas vezes, repetindo-o...

é um filme que faz com que nos questionemos em vários aspectos, inclusive sobre os julgamentos que fazemos às vítimas do abuso, como "por que ela não denunciou antes?" ou "quem se submete a esse tipo de coisa?"...

e é interessantíssimo perceber que, às vezes, há mais liberdade em estar fisicamente preso do que poder ir e vir, mas sempre acompanhado de demônios e culpa.

L07 - Diálogos Impossíveis

adoro Luis Fernando Veríssimo! a sua capacidade de contar histórias riquíssimas (e insanas) em poucas linhas é o que mais me fascina e atrai.

já li muitos livros dele, mas nenhum me marcou mais do que uma coletânea chamada O Nariz e Outras Crônicas. acho que foi nesse paradidático que percebi que o que apreendemos depende muito do nosso espírito quando lemos, e que é bastante interessante revisitar alguns textos, de vez em quando.

quando eu penso naquele livreto companheiro, as crônicas que mais me marcaram foram Ela, que é um relato de um pai de família depois de ter comprado a 1ª televisão; O estranho procedimento de Dona Dolores, quando a protagonista da história começa a agir como se fosse a Aracy da TopTherm ("vamos falar de coisa boa?"); e a do título, O Nariz, que conta o drama de um respeitado senhor que é tido como louco por ter começado a usar o apetrecho óculos-nariz-bigode do Groucho Marx.

em Diálogos Impossíveis, LFV usa de toda a sua loucura para trazer os textos no tema da coletânea. é delicioso se perder nas situações improváveis descritas, especialmente quando os protagonistas são figuras conhecidas, como Robespierre ou Einstein.

é importante dizer que não se tratam de textos que façam com que o leitor irrompa em gargalhadas (o que acontece nos seus outros livros), mas ele traz textos leves e profundos, deleitando quem os lê de forma arrebatadora.

a seguir, o meu favorito:

Picasso e Goya Sob o Sol

Uma tarde, depois de um bom almoço, estirado numa cadeira preguiçosa no terraço da sua casa na Côte d"Azur, Picasso adormece e sonha que está no museu do Prado, em Madri, na frente do quadro As Meninas do Velázquez, e que ao seu lado está alguém que a princípio ele não reconhece. Ele e o outro são as únicas pessoas no grande salão do museu onde a pintura de Velázquez é o único quadro. A pintura de Velázquez é o único quadro no museu inteiro.

Picasso julga reconhecer o homem ao seu lado, mas não tem certeza de que seja quem está pensando.

-- De onde eu conheço o senhor?

-- Talvez dos meus autorretratos...

-- Francisco Goya!

-- Em pessoa. Ou o que resta dela. E o senhor é...

-- Pablo Picasso.

-- Foi o que eu desconfiei. Mas nos seus autorretratos o senhor nem sempre é reconhecível...

-- É que eu nunca aceitei que os dois olhos não pudessem ser do mesmo lado do nariz.

-- Mas eu deveria ter lhe reconhecido pelas fotografias. O senhor é uma das pessoas mais fotografadas do mundo. Eu o invejo.

-- Por ser tão fotografado?

-- Não. Por poder pintar os dois olhos no mesmo lado do nariz. E a boca onde quiser. E os pés no lugar das orelhas. Eu não tive essa liberdade. Fui um revolucionário na minha arte, mas não o bastante. Éramos reféns da anatomia. O senhor se libertou disso.

-- Me diga, o que o senhor acha desta ideia de esvaziar o Prado e deixar só As Meninas do Velasquez em exposição?

-- Acho justo. É uma maneira de dizer que, depois de Velázquez, toda a pintura é supérflua.

-- Mas as suas pinturas negras também foram banidas do museu, com todas as outras...

-- Está certo. Eu não as pintei para serem expostas. Foram pintadas nas paredes da minha casa, para só serem vistas por mim. São expressões da minha misantropia, do meu asco pela vida, da minha loucura final. Quem quer ver a sua degradação exposta em público?

-- Elas são as pinturas mais poderosas e inquietantes jamais feitas. E olha que eu não sou de elogiar a concorrência.

-- O seu Guernica não fica atrás...

-- Obrigado, mas eu acho Guernica uma ode à inutilidade da arte. Foi elogiado como um libelo contra a estupidez humana, mas não impediu que outras "Guernicas" acontecessem, e a estupidez humana prevalecesse. Guernica foi apenas um aperitivo para Hiroshima.

-- Somos supérfluos de várias maneiras, além da que decretou o Prado. Todo artista é supérfluo.

-- Menos o Velázquez.

-- Menos o Velázquez.

-- Sabe, senhor Goya, muita gente já nos comparou, e notou como nossas trajetórias são opostas. O senhor começou como pintor da corte, retratando a vida alegre da aristocracia na Madri dos Bourbons e acabou doente, num exílio amargo entre pinturas negras, sozinho e esquecido. Sua trajetória foi da frivolidade para as trevas. Eu, ao contrário, fui ficando cada vez mais mundano, cada vez mais frívolo. Comecei como um artista de vanguarda incompreendido e acabei como uma celebridade internacional, uma das pessoas mais fotografadas do mundo, fazendo arte instantânea como criança. Apesar de velho, ainda tenho saúde e tesão pela vida. Agora mesmo, acabo de comer um peixe maravilhoso feito pela minha atual mulher... A sétima, se não perdi a conta.

-- Por sinal, senhor Picasso, obrigado por sonhar comigo na sua sesta. A única maneira que eu tenho de voltar à vida, nem que seja só para rever As Meninas, é na imaginação dos outros. E, não sei se o senhor notou, no seu sonho eu não sou surdo, como fui durante grande parte da minha vida. Muito obrigado.

-- Olhe, senhor Goya! Que estranha luminosidade emana do quadro do Velázquez! O senhor não está vendo?

-- Não, eu...

-- Parece o sol. É a luz de um sol!

Picasso acorda com o sol na sua cara. Pensa em chamar a mulher para lhe trazer um chapéu, mas não se lembra do seu nome.  

terça-feira, 18 de março de 2014

C13 - Ninfomaníaca - Volume II

diferentemente do que ocorreu no 1º volume, que eu não tinha me decidido se ia querer ver mesmo o filme (minha relação com o Lars Von Trier é, no mínimo, controversa), neste fui logo no dia da estreia (da outra vez eu já havia lido muito spoilers, quis evitar a fadiga!).

dessa vez, não teve como passar despercebido que a versão brasileira tem mutilações -- em alguns momentos a dinâmica do filme se fragmenta de forma pouco condizente com a narrativa.

mas, apesar desses poréns, gostei muito do 2º volume (apesar de ter achado a primeira parte mais instigadora). sei que a história tinha que começar a afunilar, e o seu desenrolar não me decepcionou.

Ninfomaníaca é uma dança muito bem orquestrada entre os conceitos do que é natural, do que é inato e do que é natureza -- não por acaso têm o mesmo radical, mas são passíveis de suscitar ideias distintas, quando aliadas à trama.

no 2º volume, o mundo fica maior: faz-se relação mais ampla de Joe com o ambiente, e de como a sua presença catalisa alguns comportamentos.

a nudez da protagonista como os seus sentimentos e com as suas vontades fez com que eu até me esquecesse da nudez literal. é uma história onde não há nada morno; tudo é extremo.

inocência e malícia correm de um personagem para o outro, sem se fixar em um ponto. a dicotomia original entre repressão e liberdade é tão esgarçada, que presenciamos liberdade repressora e repressão libertadora, inclusive.

em um determinado momento, após muito apanhar (não só da vida), Joe resolveu que precisava caber em alguma classificação social, que não podia continuar sendo o que era... e ela se enterrou em si mesma, tentando se compreender e se corrigir (ou se aceitar).

quando ela resolveu matar os seus instintos, o filme nos presenteia com uma das suas cenas mais poéticas, ao som do Réquiem de Mozart (que amo incondicionalmente!).

não preciso mais nem falar das atuações primorosas, mas não me furto de fazer loas às maravilhosas digressões, que ilustram, quase como parábolas bíblicas, a conversa entre Joe e Seligman.

em alguns momentos, o tom beirando o professoral que o filme assume acaba trazendo à tona o que estava, no mínimo, no inconsciente do expectador.

quem imagina que Ninfomaníaca se trata meramente de um pornô cult (isso existe?), precisa urgentemente rever os seus conceitos.

p.s. e a música que encerra o filme (assistam!) é perfeita: por seu texto, por sua história e pela sua pertinência com a protagonista.

sexta-feira, 14 de março de 2014

L06 - Persépolis

ganhei Persépolis no meu aniversário do ano passado, dos lindos mais lindos Mariana e João Vilnei, um sopro de carinho vindo de Portugal (com a versão em português de lá). sempre que aparecia uma expressão específica (como fixe ou montra), sentia-me novamente com eles, nas férias que tivemos e que teremos <3

voltando ao livro, comecei a lê-lo assim que o ganhei, mas, ainda que seja uma graphic novel, o assunto não é de tão rápida assimilação, e eu me pegava divagando horas e, quando via, não tinha passado de 10 páginas (o que acho ótimo, inclusive).

então apareceu um concurso interessante, de salário ainda mais interessante, e o livro foi para a prateleira, lido pela metade, esperando o momento certo de voltar para as minhas mãos e, principalmente, para a minha cabeça.

essa semana eu o agarrei pelos chifres, reli o começo e não consegui mais parar. Persépolis é a autobiografia de Marjane Satrapi, que conta nos quadrinhos o recorte da sua vida, dos 10 aos 20 e poucos anos (período que compreendeu desde a revolução islâmica do Irã até a guerra do golfo, iniciada em 1990).

a dificuldade dela, por conta da pouca idade, para compreender o que acontecia e para se adaptar ao retrocesso que a dita "revolução" trouxe, é narrada na primeira parte do livro. na segunda parte, Marjane conta a sua história a partir dos 14 anos, quando vai estudar na Áustria por 4 anos (sem falar alemão e sozinha -- sua família se manteve no Irã).

estimulada desde sempre a ser ela mesma e não aceitar tacitamente dogmas, Marjane é uma iconoclasta. e é interessantíssimo vê-la questionar os valores impostos pelo Irã, pela sociedade, por ela mesma...

enquanto eu lia, percebia quão pouco eu conhecia a realidade dela. quando a guerra do golfo começou, eu tinha 12 anos, e não suportava ver aquelas telas verdes na tv, o tempo inteiro, o dia inteiro. admito, com vergonha, que escolhi me manter distante, ignorar e não tentar compreender o que se passava ali. mas ela não fez essa escolha, e nem a faria, se pudesse.

tudo nela parece mais extremo (sem trocadilhos com extremismo religioso): viu amigos morrerem, parentes "desaparecerem", crianças serem cooptadas pelo exército, com a promessa de serem recompensados após a morte, foi separada da família para ter uma oportunidade de estudar, mas, incrivelmente, o que quase a matou foi uma desilusão amorosa.

é incrível como cada um escolhe as suas guerras... ela poderia ter quebrado por qualquer dos motivos já citados, mas culpava-se por quase ter morrido (sim, isso quase aconteceu, ela chegou ao fundo do poço montada numa britadeira) por ter acabado um namoro com uma cara que ela tinha consciência de que era um babaca completo.

do lado de cá, é muito difícil não julgar os motivos por que as pessoas sucumbem -- não ficamos pedindo o tempo todo, metaforicamente, para pensarem nas crianças mudas telepáticas? não queremos que as pessoas vejam o que nos é óbvio?

ao mesmo tempo, como deve ficar a cabeça da pessoa que compreende toda a lógica de que não deve se afundar no acolchoado sofá mental, mas que não consegue se levantar? e provavelmente ainda tem que lidar com a culpa, o torpor e a autocomiseração...

no meio dessa espiral descendente, já de volta ao Irã e à base de remédios, Marjane foi visitar um amigo de infância, que havia voltado da guerra sem um braço e uma perna. antes de encontrá-lo, ela achava que ele estaria numa depressão pior do que a dela, mas foi uma grata surpresa que ele estivesse de bom humor, inclusive fazendo piadas.
nesse dia, aprendi uma coisa essencial: só conseguimos sentir pena de nós mesmos quando as nossas desgraças ainda são suportáveis... quando se ultrapassa esse limite, a única maneira de suportar o insuportável é rirmo-nos dele.
e o humor voltou, para lhe segurar a mão e às vezes lhe fazer cócegas, quando mais precisava.

na trama, a avó dela personificava a irreverência, a rebeldia e a capacidade de rir de si mesma -- tão parecida com a minha que me torceu o coração de saudades.

domingo, 2 de março de 2014

L05 - O Espadachim de Carvão

ano passado eu fui assistir Girl Most Likely (Minha Vida dava um Filme), com a maravilhosa Kristen Wiig (gostei muito, apesar de achar que ele teria sido muito melhor se tivesse terminado 2 minutos antes) e, enquanto esperava a sessão começar (fui bem mais cedo, pra conseguir um lugar tranquilo para estacionar), resolvi ouvir o Nerdcast sobre Literatura Fantástica Brasileira, e a mistura mexeu muito comigo.

essa combinação me despertou a ideia de voltar a escrever (este blog é um produto desta epifania, inclusive), fechar alguns projetos antigos e, quem sabe, num futuro ainda sem prazo, catalogar o redemoinho que habita a minha cabeça em algo tangível.

voltando ao Nerdcast, de cara, já fiquei curiosíssima com todos os livros, especialmente depois das falas dos autores, mas o que entrou na lista primeiro foi O Espadachim de Carvão, do Affonso Solano.

finalmente consegui me organizar pra lê-lo e adorei -- sei que havia muito pouca chance de eu não gostar, pois, além de literatura fantástica ser o meu gênero favorito,  a narrativa é bem escrita, envolvente, rica, e muito bem amarrada.

Adapak descobrindo Kurgala nos leva nesta viagem para que nós também entremos neste mundo de cabeça. as conversas dele com o seu pai e com os seus tutores são bem interessantes, e dignas de serem relidas (vou me guardar para voltar à Kurgala quando o segundo livro for lançado, para ler os dois de uma vez só).

outro ponto de que gostei foi da escolha no número de entidades divinas -- enquanto a maioria dos livros fantásticos oscila entre os cabalísticos 3 ou 7, é muito raro colocarem 4. eu gosto da dinâmica de 4 figuras de autoridade, remete-me à perfeição do quadrado -- sei que podia ser um trapézio ou um losango, mas imaginei um quadrado pois, se houvesse um superior ao outro, não havia necessidade de se nomear os subjugados (perdão pela confusão matemática, ainda tô meio bêbada, e os números resolvem sair pelos poros).

além disso, a cadência de cronologia não linear consegue despertar uma vontade louca de xingar o autor por deixar o capítulo anterior no acorde suspenso, mas esta vontade passa rápido. e volta no final do próximo capítulo. e passa. e estou agora no limbo, esperando o próximo livro.