ganhei Persépolis no meu aniversário do ano passado, dos lindos mais lindos Mariana e João Vilnei, um sopro de carinho vindo de Portugal (com a versão em português de lá). sempre que aparecia uma expressão específica (como fixe ou montra), sentia-me novamente com eles, nas férias que tivemos e que teremos <3
voltando ao livro, comecei a lê-lo assim que o ganhei, mas, ainda que seja uma
graphic novel, o assunto não é de tão rápida assimilação, e eu me pegava divagando horas e, quando via, não tinha passado de 10 páginas (o que acho ótimo, inclusive).
então apareceu um concurso interessante, de salário ainda mais interessante, e o livro foi para a prateleira, lido pela metade, esperando o momento certo de voltar para as minhas mãos e, principalmente, para a minha cabeça.
essa semana eu o agarrei pelos chifres, reli o começo e não consegui mais parar. Persépolis é a autobiografia de Marjane Satrapi, que conta nos quadrinhos o recorte da sua vida, dos 10 aos 20 e poucos anos (período que compreendeu desde a revolução islâmica do Irã até a guerra do golfo, iniciada em 1990).
a dificuldade dela, por conta da pouca idade, para compreender o que acontecia e para se adaptar ao retrocesso que a dita "revolução" trouxe, é narrada na primeira parte do livro. na segunda parte, Marjane conta a sua história a partir dos 14 anos, quando vai estudar na Áustria por 4 anos (sem falar alemão e sozinha -- sua família se manteve no Irã).
estimulada desde sempre a ser ela mesma e não aceitar tacitamente dogmas, Marjane é uma iconoclasta. e é interessantíssimo vê-la questionar os valores impostos pelo Irã, pela sociedade, por ela mesma...
enquanto eu lia, percebia quão pouco eu conhecia a realidade dela. quando a guerra do golfo começou, eu tinha 12 anos, e não suportava ver aquelas telas verdes na tv, o tempo inteiro, o dia inteiro. admito, com vergonha, que escolhi me manter distante, ignorar e não tentar compreender o que se passava ali. mas ela não fez essa escolha, e nem a faria, se pudesse.
tudo nela parece mais extremo (sem trocadilhos com extremismo religioso): viu amigos morrerem, parentes "desaparecerem", crianças serem cooptadas pelo exército, com a promessa de serem recompensados após a morte, foi separada da família para ter uma oportunidade de estudar, mas, incrivelmente, o que quase a matou foi uma desilusão amorosa.
é incrível como cada um escolhe as suas guerras... ela poderia ter quebrado por qualquer dos motivos já citados, mas culpava-se por quase ter morrido (sim, isso quase aconteceu, ela chegou ao fundo do poço montada numa britadeira) por ter acabado um namoro com uma cara que ela tinha consciência de que era um babaca completo.
do lado de cá, é muito difícil não julgar os motivos por que as pessoas sucumbem -- não ficamos pedindo o tempo todo, metaforicamente, para pensarem nas crianças mudas telepáticas? não queremos que as pessoas vejam o que nos é óbvio?
ao mesmo tempo, como deve ficar a cabeça da pessoa que compreende toda a lógica de que não deve se afundar no acolchoado sofá mental, mas que não consegue se levantar? e provavelmente ainda tem que lidar com a culpa, o torpor e a autocomiseração...
no meio dessa espiral descendente, já de volta ao Irã e à base de remédios, Marjane foi visitar um amigo de infância, que havia voltado da guerra sem um braço e uma perna. antes de encontrá-lo, ela achava que ele estaria numa depressão pior do que a dela, mas foi uma grata surpresa que ele estivesse de bom humor, inclusive fazendo piadas.
nesse dia, aprendi uma coisa essencial: só conseguimos sentir pena de nós mesmos quando as nossas desgraças ainda são suportáveis... quando se ultrapassa esse limite, a única maneira de suportar o insuportável é rirmo-nos dele.
e o humor voltou, para lhe segurar a mão e às vezes lhe fazer cócegas, quando mais precisava.
na trama, a avó dela personificava a irreverência, a rebeldia e a capacidade de rir de si mesma -- tão parecida com a minha que me torceu o coração de saudades.